segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Desculpa pai

Desculpa pai.

Eu não consegui.

Não consegui ser nada do que você sonhou.

Não consegui ser jogador de futebol. Não consegui gostar de esporte. A camisa do seu time eu não pude vestir. Do seu preconceito não consegui me travestir.

Desculpa, mas a culpa não foi minha.

Não consegui descabaçar a vizinha. Eu sei. Eu sei que ela me dava bola. Mas eu não queria bola. Queria boneca.

Desculpa pai, mas me é caro gostar de carro. Só sei entrar e andar. Se parar, não vejo graça me sujar de graxa.

Desculpas pelo jeito que falo. Por sentar de pernas fechadas. Por não mostrar meu falo.

Desculpa por ser emotivo. Por não conseguir esconder meus sentimentos, por chorar sem motivo, mesmo sem estar bêbado. Desculpa por não beber, não gostar de cerveja. Por não tentar provar a minha masculinidade me dirigindo ao chão de um bar. Por não matar ninguém dirigindo.

Desculpa por não gostar de carne pingando sangue. Por não gostar de carne. Por não gostar de sangue. Por não assistir filmes do Van Damme. Por não ter sido de gangue. Por não brigar na rua. Por não gozar em revista de mulher nua.

Desculpa por não saber trocar uma resistência de chuveiro. Por não ter sido engenheiro. Por não ter sido delegado. Por não ter filhos, não continuar seu legado.

Desculpa por assistir novela. Por gostar mais da mamãe. Por ajudar ela a lavar louça. A escolher a roupa. Por não ajudar você a torná-la uma escrava.

Desculpa por ter modos à mesa. Por demonstrar minha tristeza. Por gostar de artes e cultura.

A vida é dura. Você também precisa ser.

Você vai aguentar.

Você é macho.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Dois Poeminha Safado

Linguística

Esqueça a morfologia,
é hora de morfar.

A sociolinguística é o que nos une

Não pense na psique,
na sintaxe,
sinta

Seu cinto sou eu

Não há semântica
Só há sentido
na fonética e fonologia
quando você sente
a melhor função da língua



Schwa 


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Cronos

Ela rola a rola em seus lábios de labareda
Sua boca quente parece não ter dentes

A língua alinha o universo
Estrelas no céu
Sinto sua textura

Acaricia a pica dura como cimento
Agradeço o nascimento
E a sensação de quase morte

Ela me olha
Olho para meus cílios
Ela me molha
E engole nossos filhos

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Limpando ratos

Meu mouse me enoja.

Se deposita nele uma crosta. Agora, regurgita tudo que o fiz engolir.

Todos os dias às 9 da manhã invés de tomar café ele é obrigado a deglutir todos os meus resquícios. As coçadas noturnas no cu. A punheta matinal após perceber que a presença da namorada era apenas um sonho. A escova de dentes. As chaves. O celular. O cigarro. O cabelo. O jornal. O livro. E a multiplicação de tudo assegurada no ônibus.

Me devolve tudo. Sou eu que acho nojenta a sua superfície sebosa.

Quero lavá-lo. Lavar as mãos. Começar tudo de novo. Pedir desculpas. Errei. Tu erraste. Outros erraram. Temos um trato senhor rato. Apertamos as mãos e está tudo resolvido. O melhor acordo é aquele que o outro é obrigado a aceitar.

Mas não consigo levantar. Essa tarefa me prende. Essa música me apreende. Só mais uma revisão. Só mais uma lida. Será que há crase aqui? Ah, há. É à. Não a. Nem á. Ao consultar me perco na esquina do serviço. Abrir o navegador é sempre uma chance de naufrágio. A maré me leva às mensagens passadas do e-mail. Exploro as novas velharias de facebook. Anuncio filho da puta. Preciso passar isso. Cinco segundos de publicidade é muito tempo na minha idade.

Sou obrigado a levantar. Abaixo as calças. Mijo. Lavo as mãos. A água leva a alma da sujeira.

Volto ao mouse imundo. Bate 18 horas. Vou embora beber.

Amanhã passo um álcool.

O álcool, às vezes, resolve muitos problemas.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Por quê?

- Por que eu? Por que logo comigo? Com a pessoa que mais te ama? Nunca fiz mal pra você. Nunca fiz mal pra ninguém. Pelo contrário, sempre procuro fazer o bem pra todo mundo. Sempre prezei pela amizade dos meus amigos, pelo amor de quem eu amo e pelo bem de qualquer ser humano. Sou prestativa com todos. Sempre estendo a mão. Sempre tô disponível para quem precisar de mim, toda hora. Nunca neguei nada pra ninguém. Sempre fui generosa. Emprestei dinheiro para quem precisou. Emprestei meu carro para quem precisou. Emprestei meu ombro para quem precisou. Dei meu tempo para quem precisou. Nunca me aproximei de ninguém querendo favores. Nunca falei mal de ninguém. Nunca fui mau com ninguém. E é isso que eu recebo em troca. Por quê? Me responde! Por quê?

- Por isso mesmo.




sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Rascunhos

Epifânio
Ao lhe faltar o ar
o fanho teve epifania
aprendeu a falar.




Mistério
Pelos seus cabelos,
não consigo saber,
a cor dos seus pelos.
Nem se os têm,
quem o saberá?



Gato
Gato, gato, gato...
Desfila como cuidasse do sapato.
Tu és um gato, gato.

Aproxima-se,
ataca minha rinite
e te mato.

Dentro dum saco
arremesso
rio.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Mais uns poema aí

Franqueza e Fraqueza


Sejamos francos

Caso contrário

Sejamos frangos

Bater ou se abater?

O jogo só vira

Se a Palavra é viva

Se virar ação

Haverá viração?

Quem viver

viverá

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Os dias de hoje

Tem tanto conteúdo, contudo, pouco contato

Com tato, contanto, não se pode com tudo

Tanta informação e tão pouca informatividade.

Tanta gente, mas tão poucos de verdade.

Tanta comida e tão poucos comedores.

Tanta corrida e tão poucos corredores.

Tanto dinheiro e tão poucos roedores.

Há tanto e tão pouco

Tanto tampouco.



quarta-feira, 15 de julho de 2015

Uns Poema aí

Beleza única

Tinha a beleza delicada de uma guerreira
Era séria e arteira
Era tão linda
Mas tão linda
Mas tão linda
Que ninguém acredita
Nem homem
Nem Deus
Nem o Capeta
Sua graça nem cabe na minha letra
Pena
que tinha chulé na teta.



Clichê da Poha

Amor e dor
Rima
E é um clichê da poha!

Na poesia
os opostos se atraem
E isso também é um clichê da poha!

Linguagem automatizada
tão usada
Que não posso dizer mais nada.

Poha!



Violência parte I

Quando violado
vi o lado
do meu violador

Ter sido roubado
era o resultado
do roubo diário dos seus direitos

Mas não vi direito
E matei o filho da puta



Espírito Curitibano

Em Curitiba toda alma é di vina
minha navegação
para na estação tubo.
Tudo no centro é solidão
mas não largo mão
de encontrar algo aqui.
Vou em busca de dois corações
por favor, com catupiry.



Bem me viu quem me vê

Quem me vê assim,
de passagem,
me vê feio,
meio torto,
indo e vindo.

Prometo:
quando morto,
serei lindo.



Violência parte II

A Violência é grátis, é Free, é gratuita
Promoção! Ninguém acredita
Pegue a sua na próxima esquina
Ninguém se esquiva
É a sina da nossa rotina

É possível cheirar (cocaína)
Degustar (sangue)
Ver (Chacina)
Ouvir (gritos)
Sentir na pele a emoção

Ela é Tua, é minha
é nossa senhora
É Aqui, é Agora
A Cidade em Alerta
Aberta
Salve o Brasil, Urgente
O tempo urge na urbe
Ruge o cordeiro
para receio do pastor

A violência é democrática
Ninguém tem paz
Criada pela desigualdade
Tornou todos iguais

É física, é psicológica
É metódica
É cerveja, é vodka
É crack, é no futebol
É na luz da lua e do sol
É na escuridão
É em casa
É na rua
É na escola
É na escolta
É da criança
É do adulto
É de todos
É em tudo
A nossa volta
Deus está com medo
não volta cedo

Onisciente
Onipotente
Onipresente

Presente
Passado
Pressente o futuro?

terça-feira, 9 de junho de 2015

Glúteos trabalhados

Minha bunda é como um imã atraído pela cadeira da firma. Nela, meus glúteos se colam às 8h de todas as manhãs. Passo o dia tentando soltá-la e só consigo às 18h.

Os anos de atração fazem com que a cadeira tenha as minhas formas, com as duas bandas bem delineadas. Entre parafusos e pregas, o que mais me prende é o bolso. Quando escolhi minha profissão queria ajudar pessoas, tentar salvar o mundo. Hoje só quero salvar os meus fundos. O idealismo não paga as contas.

O sonho começou nos bancos da faculdade. Por quatro anos estudei comunicação e cultura digital, filosofia e ética, fotojornalismo, fundamentos de administração, história contemporânea do Brasil, história da comunicação, introdução ao jornalismo e legislação, língua portuguesa, planejamento gráfico, redação jornalística, técnicas de apuração, comunicação institucional, história da arte e da cultura, jornalismo digital, jornalismo gráfico, rádiojornalismo, sociologia da comunicação, telejornalismo, teorias da comunicação, cinema documentário, metodologia científica, pesquisa em jornalismo, planejamento em jornalismo, psicologia e comunicação, crítica ao jornalismo, empreendedorismo e inovação em jornalismo, teoria política e finalizei com o temido trabalho de conclusão de curso.

E tudo isso para quê? Para hoje recepcionar visitantes, atender telefonemas, fazer planilhas, desenvolver relatórios, organizar contas, pagamentos, arquivos e documentos.

Passei o período acadêmico com a esperança de que no final haveria um emprego, uma recompensa por todas noites em dia e o desgastante tempo gasto.

Cheguei ao final da corrida e não pude subir ao pódio, não recebi medalha, não rompi a faixa de chegada e ninguém me aplaudiu. E o pior, não pude parar de correr.

Tinha a ideia de que sempre haveria lugar para os melhores, mas não. A corrida é injusta. Há pessoas que pegam um atalho. Percorrem metade do trajeto e chegam onde eu deveria estar.

Encontrá-los faz com que eu me sinta ainda mais frustrada. A pergunta “e aí, tá fazendo o quê?” é opressora. Sou obrigada a dizer que sou uma mera auxiliar administrativa. E que não, não fui eu que desisti da área. Foi ela que desistiu de mim.

Dia desses atendi um ex-colega. Tive que me submeter. Prestar serviço à uma pessoa que não estudou nem um terço do que eu. Esse filho da puta era o mesmo que se orgulhava de ter saído da faculdade sem ter lido nenhum livro, que colava na prova, que fez o trabalho de conclusão nas costas da sua dupla e que entrou na empresa onde está por indicação de um amigo que vivia no bar com ele enquanto eu estava na aula.

Mas, fazer o que? O meu destino é o de quem não nasceu com o cu virado para a lua.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Vá dia

Hoje o mundo acordou pronto para incomodar.

Responsável por depositar o peso das suas nuvens sobre meu universo, minha mulher rouba minha brisa me dando um “bom dia” recheado de insultos. Não fiz nada (homens nunca fazem nada), mas ela acredita que a culpa pelo chuveiro ter estragado é minha. Jorra na minha cara que não sou homem nem para consertar um chuveiro.

Tento explicar que não sei fazer isso, sou um intelectual que não se dedica aos problemas práticos da vida. A vida, então, se vinga de mim na prática.

O motorista do ônibus, que atrasa muitas outras pessoas, atrasa também a mim, mas sou egoísta o bastante para crer que é tudo comigo.

Na empresa tenho a breve sensação de que tudo irá melhorar com o término das minhas tarefas. Mas elas regurgitam. Meu chefe, que tem a função diária de tornar meu mundo pior, hoje exerceu seu papel com maestria. Não só criticou toda a execução dos meus deveres como também me humilhou. Me ironizou em frente aos colegas. Ajuizado, baixo a cabeça. Preciso do emprego, preciso do dinheiro.

O mundo, mais uma vez, me tornou mundano, rancoroso, odioso e odiante.

No meio da reexecução do serviço recebo ligações. Cobranças bancárias. Logo lembro que preciso pagar a escola do meu filho, a conta de água, a conta de luz e várias outras coisas incontáveis.

Passo o tempo pensando quanto tempo falta para se encerrar o meu tempo. Depois disso estou livre para me sentir esgotado e não fazer mais nada.

Encontro uma saída para descarregar todos os septilhões de quilos que o mundo depositou sobre minhas costas. Entrego-me ao alcoolismo, escondendo meus problemas dentro de outro maior.

Sem companhia, tomo o primeiro gole e falo com o mundo.

- Hoje você tava pesado hein!?

- Eu tenho sempre o mesmo peso. Você que tá fora da forma.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Palácio Iguaçu

Praça Nossa Senhora de Salette, s/n - Centro Cívico
80530-909 - Curitiba - PR



Oi Betinho, tudo bom?

Não sei se lembra de mim.
Por um momento gostaria muito que lembrasse.

Eu lembro de você perfeitamente Betinho. Você era tão bonitinho. Vinha para a aula arrumado, com gel no cabelo. Ah, e como era educado. Você tinha muita educação, Beto!

No recreio adorava brincar de carrinho e na sala era o aluno mais aplicado. Fazia as tarefas em dia, prestava atenção nas aulas e sentava bem na minha frente. Nunca foi bagunceiro, muito menos desordeiro.

Eu sempre soube que você seria político, Betinho. Me orgulhava de dizer: “o governador foi meu aluno”.

Mas sabe Beto, fiquei muito decepcionada. Parece que não aprendeu nada comigo, só com quem não deveria. O que você fez foi maior do que os atos de Álvaro Dias, Beto. Você superou o seu mestre.

Se pudesse deixaria você de castigo na escola. Mas não posso. Não posso fazer nada enquanto você parece achar que pode fazer tudo.

E sabe o que é o pior, Betinho? Você nem mesmo assumiu o que fez. Logo você, que tomava a frente da turma, que se empoderava, que gostava de estar em evidência, agora se esconde.

Você disse que não viu truculência da polícia, que eles estavam defendendo a sua integridade e apenas continham os arruaceiros. Ora Betinho, ninguém mobiliza helicópteros, cães, tanta gente e tanta arma só para conter alguns arruaceiros.

Mas não foi só você que eu vi na tv. Eu vi professores como eu sendo agredidos. Eu vi balas de borracha. Vi bombas de “efeito moral”. Vi spray de pimenta.

Você me deixou lacrimejante, Beto. Me senti machucada como aqueles 213 que você feriu. Era como se cada uma daquelas balas atingisse o meu corpo e cada dente de cachorro rasgasse a minha pele. Aquele spray sufocante jamais vai me deixar respirar aliviada.

Sabe Beto, eu queria que você lembrasse de mim. Talvez você conseguisse sentir compaixão, sendo alguém que você conhece, não só um número desses que você vê toda hora.

Mas se, por acaso, você lembrar de mim não conte para ninguém.

Jamais diga que eu fui sua professora.

Eu tenho vergonha de você Carlos Alberto Richa.




quinta-feira, 16 de abril de 2015

Eterna companhia

Quando criança não sabia o quanto era importante para mim. Minha mãe não me ensinou, mas a vida sim. Tive que apanhar muito e aprender sozinho que não posso viver sozinho.

Nosso relacionamento foi como um rolo que você vai enrolando, enrolando, enrolando e termina em casamento.

Conhecemos juntos as cores. O amarelo, o verde e até o vermelho. Mas nossa relação é, na maioria das vezes, transparente.

Não amo, mas dependo. É uma doença. Não consigo me livrar. Faz parte de mim. Me desespero só de pensar no fim.

Na dúvida, estou sempre prevenido.

Tenho companhia no ônibus, no carro, na firma e, acima de tudo, no quarto. Com a cama fria ou quente, sempre está lá à minha espera.

Alguns estranham, pensam que utilizo para fins escusos.

Estará sempre comigo (?)!

Divórcio? Não consigo.

Parece exagero, mas acredite, não há como viver em Curitiba, tendo renite, e não carregar papel higiênico.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Autobiografia da timidez

Guylherme Custódio e eu nascemos juntos. No dia 16 de janeiro de 87 na janela do apartamento 26 da maternidade Nossa Senhora de Fátima às 3h45 da madrugada não se ouviu uma criança chorar. Eu não deixei ele chamar atenção de ninguém.

Depois ele foi crescendo, crescendo,crescendo,crescendo,crescendo,crescendo e crescendo.

Em uma dessas vezes em que ele crescia (em algum sentido ele nunca para de fazer isso) o malandro aprendeu a me esconder.

Ele sabe que existo e quando conta ninguém acredita. Mas ele não me renega.

Como sabe que vivo nele e que sou um perigo eminente, adotou uma postura toda espalhafatosa para me ocultar. Acabo não aparecendo atrás daquele tamanho, daquele cabelo e daquele desengonço.

Mesmo sendo um curitibano típico, ele me disfarça.

É educado com outros, sorri, cumprimenta porteiro, caixa de mercado, cobrador, faxineira e todo mundo que merece ser cumprimentado.

Só com vizinho eu ganho a disputa. Ele pega o ônibus todo dia com as mesmas pessoas e não dá nem um oi. Diz ele que faz isso por que gosta de usar o seu direito curitibano de não falar com ninguém, mas no fundo eu sei que é mais uma vitória minha.

A tática dele para me vencer é não se levar a sério. Mas um dia eu ganhei de goleada.

O seu Canuto, pai dele, era meu aliado. Se encarregava de contar a minha história e deixá-lo mais envergonhado. Como seu Canuto se foi há 10 anos, então me encarrego de contar agora:

Quando ele era pequeno eu era maior que ele. Um dia o Guylherme foi comemorar o aniversário dele lá no Mato Grosso do Sul, com os parentes paternos.

A festa foi bonita. Fiz uma coisa que faço até hoje, ao menos uma vez por ano: deixar ele sem jeito quando cantam parabéns pra você.

Mas isso não foi nada em vista do que fiz aquele dia. Ele mesmo confessou.

Voltando para Curitiba, seu Canuto perguntou o que ele tinha achado do aniversário. Tímido por falar com o próprio pai, ele reconheceu a minha glória:

- E aí? Gostou da festa?

- Eu não comi nenhum pedaço de bolo.

- Ué, e por que não?

- Você não me ofereceu...

Seu Canuto deu risada. Eu, sem nenhuma timidez, rio até hoje.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Tubarão

Foi uma das poucas vezes que pisou na rua sem medo. Estar no protesto era romper uma barreira. Eram raras as ocasiões que aparecia em público. Mas desta vez estava entre os seus iguais, ao lado de todo aquele coletivo que lutava por direitos individuais.

Era um legítimo manifestante. Tinha faixas, cartazes, entoou gritos e até pegou no megafone. O fervor com que cantava era o de um líder sindical, mas o único sindicato que defendia era o do próprio umbigo.

Jamais trabalhou, mas definia-se como empresário. Aos poucos aprendia a mandar na empresa do pai.

Dudu estava acompanhado do segurança, que desta vez não trajava terno e não o chamava de Seu Eduardo.

Apesar de estar exercendo o seu trabalho, Afonso queria estar no protesto. Mesmo com toda a distância, Afonso e Dudu tinham o mesmo pensamento. O empregado pensava com a cabeça do patrão.

Mesma cabeça, línguas diferentes. A fala de Afonso virava piada quando Dudu estava com os amigos. Assim como sua raça, seu cabelo, seus hábitos, seu jeito de ser, sua vida.

Aceitar o outro era difícil.

Dudu tinha raiva, ódio, incômodo, negação, medo. Só gostava de uma coisa que era de Afonso.

Esteve a vida inteira afastado de pessoas assim, mas não podia evitar que quem lhe protegesse fosse alguém como ele.

Neste dia patrão e empregado estavam juntos, com a mesma camiseta da seleção brasileira e cantando o mesmo canto.

Quando retornaram, retornaram as diferenças. Depois de cantarem os gritos de ordem, a ordem voltou a ser gritada por Eduardo e cumprida por Afonso.

Dudu estava cansado, como se sentia após as partidas de tênis. Mas, antes de deitar na Jacuzzi foi até o quarto da empregada.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Vazio

Encho o peito de fumaça para ver se o vazio passa.

Passam-se segundos e jogo tudo para o alto. Não adiantou.

Com os olhos acompanho a fumaça até que ela se dissipe.

Quando ela não mais existe, tento de novo. Puxo fundo. Sinto a garganta arder.

Tento prender algo dentro de mim, mas não consigo. 

Ela também fuma. Ela também não pensa em nada. Ela também não fala. Ela também limita seus movimentos. Ela também é uma lacuna.

Tudo o que nos resta é ar, que tentamos, em vão, sujar.

Somos dois recipientes vazios e sem tampa.

Tudo o que éramos está simbolizado por um pedaço de látex amarrado e jogado num canto.

Não há desilusão. Não há tensão. Não há tesão. Não há alegria. Não há anseio. Não há vontade. Não há verdade. Não há mentira. Não há pira. Não há ira. Não há rancor. Não há dor. Não há cor. Não amor. Não há. Ná. n