sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Angústia

Quando Eulália passou pela Avenida Batel no sábado a noite, o fardo que carregava ficou ainda mais pesado. Já não agüentava mais carregar aquela terrível angústia.
Eulália era um daqueles tipos de mulher dona de casa, a mulher família. A sua vida era inteiramente dedicada ao bem estar de sua família: o seu marido Eusébrio e seus quatro gêmeos, Edna, Edvaldo, Edevair, e Edílson.
Mãe de fibra. Fazia tudo pelas suas crias, até mesmo xingar a mãe do colega de escola que tirava sarro do nome de um dos seus filhos, mesmo que a mãe do coleguinha fosse a sua vizinha com quem mais conversava (leia-se fofocava).
Eulália fazia todas as vontades de um dos seus pequeninos Ezinhos, como chamava os picorruchos.
Aos sábados Eulália ia à igreja acompanhar a aula de violão dos seus filhos. Orgulhava-se de ser a mãe do primeiro quarteto caipira do Brasil.
Aos domingos voltava à igreja na primeira missa do dia. Às 7 horas acordava e colocava o seu melhor vestido. Maquiagem nunca usava, mas se arrumava ao máximo para assistir o sermão do Padre Oderval.
Ao voltar da missa, preparava o famoso frango assado da dona Eulália, que a filha Edna reclamava quando grudada um pedaço de papel alumínio, pois sentia arrepio ao morder.
A alegria de Eulália era ver os filhos bem vestidos, bem penteados, cherosinhos e sorrindo. Eram a sua razão de viver.
Mas apesar da sua felicidade, ela estava triste ultimamente. Já não sorria mais ao assistir zorra total. Não fofocava mais com Robéria, sua vizinha surda.
Eram várias as razão para a sua chateação. O marido Eusébrio chegava alcolizado em casa, já não assistia mais a novela das 8 junto a ela, não fazia mais massagem em seus pés, não a levava mais ao motel “My truck” e não a chamava mais pra comer buchada de bode no bar do Euller.
Os filhos pareciam gostar mais do pai, e só queriam saber de ir ao jogo de futebol do combate barrerinha. Mesmo arrumando os seus bacuris para ir ao jogo, eles voltavam todos descabelados, com os sapatos enlameados e com a camisa toda suja de molho de cachorro quente. Trocaram a chateação de futebol e música pelo antes divertido bingo.
Depois desse período Eulália se abraçou ainda mais a Jesus. Mas parecia que nem deus a dava atenção: ficava sempre de braços abertos, mas nunca a abraçava.
Nem mesmo Joana Conselheira, a tão disposta mocinha do rádio a ajudou. Não respondeu nenhuma das suas 371 cartas. Tentava afogar as suas mágoas com tubaina e paçoca, mas nem isso amenizava a sua dor.
A dor cresceu ao ver jovens felizes na Avenida Batel, todos aqueles rapazes e moças com a boca cheia de dentes, ricos e drogados. Sentiu que aqueles poderiam ser um dos seus filhos, que estava indo buscar na Cia da Vila – Rústico e Acústico. Pensou que os seus filhos estariam se divertindo sem ela, enquanto assistia novela. Não agüentou. Tirou os seus seios de 30 centímetros, já abalados pela lei da gravidade, e os colocou para fora gritando: “AAAAAAAAH EU QUERO IR NO MERCADO!”.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Mistura repentina

Seu Alfredo morava em um bairro próximo ao centro da cidade havia 86 anos. Nasceu naquele lugar em uma época em que a cidade ainda era pouco agitada. Na época em que eram raros os carros passarem pela Desembargador Westphalen.
Ele negava-se a se misturar com toda esta “evolução”. Asfalto, carros, gasolina, gente eram coisas que não o atraiam. De forma alguma colocava o nariz para fora de casa e se misturar a toda essa fezes humana. Ficava somente olhando pela janela. Via dia-a-dia o mundo crescer e se auto-destruir. Observava tudo através da janela. Em sua casa ainda sobrevivia agonizante um mundo antigo, o mundo que escolheu para viver quando casou-se com dona Zuleica, que moraria com ele até os seus últimos dias.
Atrás de sua janela era imune a toda modernidade. A sua casa, um local escuro e aconchegante, o mundo não conseguiu mudar. Os sofás eram todos manchados, mas a capa bege por cima escondia suas marcas, os lustres eram grandes e robustos, e o telefone, que raramente tocava, ainda era de disco. O único contato que o mundo tinha com Alfredo era por meio do jornal, que como seu pai, Alfredo comprava todos os dias. Não lia, só dava uma olhada. Não lia nada, mal conseguia enxergar. A única obra que ocupava a sua estante era a coleção da Barça, que o seu gato, que um dia fora branco, passava por cima quando a televisão era ligada.
Desde o café da manhã até o chá da tarde Alfredo ficava na janela. Depois disso, tomava banho, rezava e ia dormir, enquanto dona Zuleica assistia a novela das 8.
Ao lado da casa de seu Alfredo havia uma Ong, cheia de jovens querendo mudar o mundo. Frequentemente alguns dos jovens tentavam cumprimentar Alfredo, mas ele continuava olhando fixo para o ponto onde estava olhando: o horizonte. Jamais deixaria que um daqueles jovens drogados interagisse com ele. Uma das jovens que trabalhava na ong era neta de um amigo seu. Mesmo assim não havia proximidade alguma, mesmo sendo Samantha neta do seu grande amigo Vieira. Seu Alberto e seu Vieira aterrorizavam a região antigamente. Quebravam tudo e mexiam com todos que estivessem pelo caminho quando voltavam do bar do Paulo, que ficava no largo da Ordem. Ao chegarem, cada um entrava em sua casa, a do seu Alfredo no meio da quadra, e a de seu Vieira na esquina com a Engenheiro Rebouças, onde hoje é uma balada que toca música dos anos 80. Após cinco minutos deitados, o mundo rodava. E os dois, simultaneamente, saíam para a janela vomitar todo o produto consumido no bar do Paulo.
Em uma quinta-feira pela manhã um dos jovens da ONG resolveu fazer uma brincadeira com seu Alfredo. Saiu pela porta junto à parede, praticamente se esfregando. Quando chegou abaixo da janela, colocou a perna em um pequeno buraco na parede e subiu, e gritou: “Ráááááááááááá”.
Seu Alfredo não agüentou. Enfarte no miocárdio. Não morreu devido ao susto, mas pela proximidade repentina que o mundo moderno chegou até ele.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Temível Carga Carregada

Desde que entrei na universidade tive antipatia pelos alunos do quarto ano. Nunca conversava com eles. Quando assisti as bancas de final de ano eu torcia para eles se fuderem, e algumas vezes a minha torcida dava certo.
Nos anos posteriores já conhecia algumas pessoas do último ano, o que tornou mais emocionante a minha torcida. Só torcia a favor, e torcer a favor é sempre mais sofrível do que torcer contra. Eu os conhecia, por que, obviamente, não estavam no quarto ano quando os conheci. Ainda tinham alguns sorrisos no rosto e um brilho no olhar.
Eu via durante o ano os meus amigos se tornarem zumbis. Aos poucos iam ficando com os olhos cada vez mais fundos, sempre boquiabertos, e com a cabeça pensando em somente uma coisa: TCC.
No período de zumbi os meus amigos só tocavam em dois assuntos. Entre si, só falam no bendito TCC. Com os demais eles falam algo que é um defeito para qualquer pessoa. Entre si, é possível ouvir conversas do tipo: “Entrevistei uma fonte importante pro meu trabalho”, “Preciso arrumar as normas da ABNT”, “Hoje eu tenho orientação”, e todos os papos do gênero.
Com as demais pessoas eles têm o péssimo hábito de levar a sério a pergunta “Oi, tudo bem?”. A cada pessoa que faz esta pergunta, mesmo que não seja próxima, recebe uma resposta sempre sincera, até demais. É provável ouvir respostas como: “To cansado”, “Meu, to fudido”, “Cara, to ficando louco”, e outras coisas vindas de pessoas que não sabem que a pergunta é feita somente por educação.
Os zumbis crônicos são aqueles que andam pelos corredores somente com um livro na mão. E se alguém encostar no livro isso irá desencadear uma encarada com um olhar mortal. Eles brigariam perfeitamente, mas não tem tempo pra perder com seres tão insignificantes como nós, simples mortais.
O mais entristecedor é que eles nunca voltam ao normal. Depois que o antídoto faz efeito todos continuam sérios. Sempre mais responsáveis do que eram antes. O que me deixa preocupado é saber que chegou a minha vez. Chegou a minha hora de desenvolver o TCC: Terrível Carga Carregada.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Fria e agradável

A noite estava fria e agradável naquela noite de 27 de dezembro de 2006. Eu acabara de chegar a Itajaí onde meus amigos estavam me aguardando. Íamos passar a virada de ano lá, no apartamento do pai de uma das nossas amigas. O apartamento ficava em frente à igreja matriz da cidade, mas a religião não nos impedia de beber dia e noite. Na mesma noite em que cheguei já bebíamos a nossa cervejinha, que consequentemente já tinha sido bebida durante o dia pelos que lá estavam antes da minha chegada. Enquanto bebíamos as mulheres da casa foram dormir e nós resolvemos ir beber e conversar na praça em frente à igreja. Além das garotas, a cerveja também tinha ficado em casa. Indo à praça somente nós quatro e os destilados. Sentíamos na pele o vento que à noite fazia a janela uivar. Mas isso não nos impedia de celebrar a minha recém chegada e o novo ano que estava por vir em alguns dias.
Enquanto conversávamos vimos dois rapazes fortes vindo em nossa direção. A primeira coisa que veio à mente foi: “eles vão nos roubar”. Mas quando começaram a falar a idéia mudou imediatamente. A voz mansa tinha um tom de pedido, como o de uma criança que pede aos pais um presente fora da época de natal. Ele nos pediu dinheiro para “se destruir”. E tinha as suas razões para buscar a tal destruição, mas nós nem imaginávamos quão grande poderia ser a desejada destruição (que o nosso dinheiro não poderia pagar).
-Cara, eu podia mentir pra vocês, mas eu quero uma grana pra eu fumar um crack. Eu tava em um hotel em balneário com a minha mulher e minha filha, e dei uma saída, quando eu voltei ela tinha ido embora com todas as nossas coisas. A vida pra mim não tem mais razão, eu to no fundo do poço. Eu to querendo uma grana pra usar droga e ver se consigo, graça a Deus, entrar em uma overdose, por que eu não tenho coragem de tirar a minha própria vida.
A esta altura ele já chorava e nós nos assustados com a situação. O seu companheiro tentava “consolar”:
- Aí meu, para de chorar. Homem não chora na frente dos outros não! Na real mesmo todo homem chora, mas chora lá no seu cantinho, não fica chorando na frente dos outros não.
Um de nós deu-lhes algum dinheiro e eles saíram. O tom da conversa já não poderia ser mais o mesmo, ficamos mais um tempo conversando sobre drogas e histórias semelhantes, mas não como aquela obviamente. Depois de algum tempo eles voltaram, um pouco mais animados. Terminamos de beber e fomos embora. Dormimos e a noite que era fria e agradável, continuou somente fria.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Tudo igual

Não adianta, desde a primeira séria, melhor, desde o pré, volta às aulas é sempre igual. Agora, no final do ensino superior pude perceber: é tudo igual. Sempre a mesma coisa. Quase todo mundo muda de visual, a maioria, principalmente as garotas, estão bronzeadas. Mesmo sendo bronzeadas com o sol de Guaratuba, ou Matinhos, onde também pegaram bicho de pé, micose, e etc, o bronze carrega um glamour. Que dali um mês irá desaparecer, e vai voltar a ser tudo igual.
Os fanfarrões continuam fanfarrões, as gostosas continuam gostosas, os bobos continuam bobos, e os vagabundos continuam vagabundos.
A suposta alegria em ver os professores é memorável. O abraço entre professor e aluno é uma cena linda de se ver. Mas se pudessem, um viveria sem o outro por 50 anos sem sentir falta.
Todos falam igual tagarela. Há suas exceções, os quietinhos não falam, afinal, os quietinhos e comportadinhos continuarão do mesmo jeito. Mas, a grande maioria fala pra caralho.
Só há um grupo que sem exceção não fala porra nenhuma. O grupo mais divertido. O grupo que também é sempre igual. Mudam as pessoas, mudam os rostos, mas o grupo, e seu comportamento, continuam o mesmo. Os calouros.
Por mais que esteja todo mundo sorrindo e falando, os calouros estão com cara de paisagem. E esta paisagem é daquelas bem vagas, e com poucas expressões. Há um ar de medo naquela paisagem. Como podem fazer mal, os veteranos, aqueles seres tão sorridentes e simpáticos. Os veteranos são assim só com os próprios veteranos. Com os calouros há um sorriso sádico, um sorriso de quem diz “vou te fuder no trote”. Depois do temível e divertido trote, temível para os calouros e divertido pros veteranos, a cara de paisagem medonha desaparece. Aí sim, aparecem os fanfarrões, biscates, nerds, malas e afins, e deixam de serem seres homogêneos e sem personalidade. E no próximo ano, os calouros serão do mesmo jeito de novo. Todos são assim. Mas eu tenho certeza de que eu não era.

Bebida não mata

Dia desses indo até a casa da minha namorada a pé, passei em frente a um bar e vi um cara que sempre vejo nos barzinhos perto de casa. Eu via o cara sempre, desde quando aportei no São Braz (uns 14 anos), mas naquele dia me veio um pensamento diferente: bebida definitivamente não mata.
Desde que cheguei aqui no maravilhoso bairro do São Braz moro em frente a um bar. Eu então piá de bosta, ia dia e noite no bar pra comprar doces, salgadinhos, refrigerantes e afins. Hoje em dia já não vou tanto no bar da frente de casa, e conforme o tempo vai passando, menos eu vou no bar (o da frente de casa). Mas desde a primeira vez que fui ao bar via alguns caras lá. Os caras pareciam senhores trabalhadores, com boa aparência, sempre muito vermelhos e bebiam bastante. Eles passavam muito tempo no bar, e obviamente não estavam comprando refrigerante, pois eu não levo horas para comprar refrigerante pro almoço. Aqueles senhores tinham aparência de bêbados, bem comportados, mas bêbados. Na verdade eu não os via somente no bar da frente de casa, mas em muitos botecos da região São Braziana. 14 anos se passaram desde a primeira vez que eu fui ao boteco. E um pensamento me flagrou naquela noite.
“Caralho, desde que eu vim morar aqui os caras são os mesmos. Os caras bebem praticamente todos os dias e ainda estão vivos porra!”. Pois bem, fiquei feliz em saber que os caras não morreram de beber. Mas fiquei triste por outra causa: o seu Afonso morreu. O dono do bar. Conclusão: beber não mata, ver os outros beber é que mata.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Múltiplos Olhares


No ano passado ganhei um concurso fotográfico chamado Múltiplo Olhares. O concurso foi promovido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), e era destinado aos estagiários da Rede Andi Brasil, organização da qual a minha agência (a Ciranda) faz parte.
As minhas fotos foram tiradas no Centro de Socioeducação Fazenda Rio Grande. Uma unidade social onde 20 meninos cumprem medidas socioeducativas em privação de liberdade. As fotos estão em exposição virtual no site do programa de estágio da Andi. E Há uma notícia sobre o concurso no site da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude.
Se quiserem conhecer um pouco do cotidiano dos meninos acessem:

Secretaria de Estado da Criança e da Juventude

Programa de Estágio da Andi

Haja fígado

Estava no ônibus indo para a faculdade de noite. Exatamente na hora H, a hora em que todo mundo volta do trabalho pra casa, e coincidentemente os estudantes vão para a aula. Mas por que será que resolveram fazer isso com as pessoas? Por que cargas d’água foram inventar de colocar as pessoas no mesmo horário no mesmo ônibus?
Pegar ônibus esse horário cansa mais do que o próprio trabalho. Chegar no trabalho e ver o seu chefe com aquele sorriso totalmente receptivo é um alívio pra quem vem de ônibus. Enquanto para quem vem de carro, ver o patrão pela manhã é um verdadeiro pesadelo.
Todo mundo se esfregando, suado, todo mundo se respirando. Cada um respeitando o pequenino espaço do outro. Apesar de os passageiros serem totalmente diferentes todos os dias, parece que todos já se conhecem, desde os calos dos pés que não podem ser pisados em hipótese nenhuma, até as partes menos importantes do corpo, que podem ser batidas e amassadas sem nenhum problema.A grande maioria já é pós-graduado em pegar ônibus. Assim como os passageiros o motorista também quer chegar rápido em casa. Os movimentos do famoso Latão estão em total sincronia com os movimentos dos passageiros. Latão pra lá, sardinhas pra cá.
Como de costume de todos os curitibanos, ninguém fala. Ninguém fala absolutamente nada. As pessoas estão tão juntinhas que é impossível que alguém esbarre em alguém, o espaço é mínimo. Mas caso isso aconteça, ninguém fala nada. No máximo o esbarrador olha para o esbarrado e finge estar falando alguma coisa, no final da “frase” apenas abaixa a cabeça como sinal de desculpa. E o esbarrado por sua vez abaixa a cabeça também, como se com esse simples gesto um dissesse para o outro:
-Ei amigão, desculpa por ter batido em você, você sabe como é né? Esses ônibus lotados balançando toda hora, isso acaba acontecendo.
E o esbarrado retruca:
-O que é isso? Não foi nada, nós que pegamos ônibus todos os dias já sabemos que isso é comum. Você pega sempre esse ônibus?
E a partir daí os dois começam a desfiar um longo papo até o ponto final. Mas isso é irreal e praticamente impossível. Ninguém fala nada. Até parece uma regra geral que todos seguem à risca. Quando o ponto chegou e alguém quer descer, o sangue sobe a cabeça e alguém tenta quebrar a regra, mas não quebra. Para pedir passagem apenas um “sença” já basta.
Mas de repente, sem mais nem menos alguém quebra o silêncio, através de um ritmo bem definido e pausas marcadas alguém grita lá da frente:
“Boa tarde senhores passageiros/ Desculpem atrapalhar a viagem de vocês/ Eu estou aqui nesse ônibus/ Pedindo a sua humilde contribuição./ Eu fiz uma operação/ que não deu certo./ Por isso eu estou com o fígado pra fora/ como vocês podem ver/ o meu fígado está em uma sacola plástica/ e preciso coloca-lo para dentro.”
Lá de trás eu penso: “Meu Deus do céu, que pessoa inescrupulosa! Eu só quero ir para a aula e as pessoas vêm aqui me mostrar o fígado. Que coisa nojenta! Aonde nós vamos parar desse jeito?”
Enquanto isso o sujeito vem lá da frente gritando e pegando os trocados que alguns passageiros conseguem pegar nos bolsos. As frases de agradecimento variam, três obrigados e um Deus que ajude:
-Brigado, brigado, brigado.
-Deus que ajude.
-Brigado, brigado, brigado.
-Deus que ajude.
-Brigado, brigado, brigado.
-Deus que ajude.
Eu lá atrás pensando: “Isso deve ser horrível. Se eu olhar para isso eu vou vomitar. Eu não tenho fígado para isso. Ou se tenho, mas pelo menos o meu está dentro do corpo”.
E ele vem se aproximando cada vez mais. E eu, felizmente sentado, prefiro virar o rosto para não ver. Colo a cara no vidro, o meu bafo começa a embaçar a janela. Mas eu não vou ver isso. EU NÃO VOU VER.
Quando ele chega bem do meu lado ele fala:
“Jovem, você não vai me ajudar?”
Eu penso em continuar olhando para a janela, mas seria muita arrogância de minha parte fingir que não ouvi. Olho primeiro para o rosto dele:
-Pai? O que o senhor está fazendo aqui?
-Filho? Você não devia estar na faculdade à uma hora dessas?
-Não mude de assunto. Desde quando o senhor tem o fígado para fora?
-Desde quando eu passei no açougue. Eu queria comer esse fígado, mas eu fiz uma operação no dente e não consigo mastigar.
-Mas se eu não me engano o senhor não disse nada a respeito do dente quando pediu dinheiro.
-Eu sei que não.E quer saber? Nem faz diferença. Ninguém perguntou nada mesmo. Todo mundo me deu o dinheiro sem perguntar mais nada. Afinal, Curitibano nunca fala.