quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Haja fígado

Estava no ônibus indo para a faculdade de noite. Exatamente na hora H, a hora em que todo mundo volta do trabalho pra casa, e coincidentemente os estudantes vão para a aula. Mas por que será que resolveram fazer isso com as pessoas? Por que cargas d’água foram inventar de colocar as pessoas no mesmo horário no mesmo ônibus?
Pegar ônibus esse horário cansa mais do que o próprio trabalho. Chegar no trabalho e ver o seu chefe com aquele sorriso totalmente receptivo é um alívio pra quem vem de ônibus. Enquanto para quem vem de carro, ver o patrão pela manhã é um verdadeiro pesadelo.
Todo mundo se esfregando, suado, todo mundo se respirando. Cada um respeitando o pequenino espaço do outro. Apesar de os passageiros serem totalmente diferentes todos os dias, parece que todos já se conhecem, desde os calos dos pés que não podem ser pisados em hipótese nenhuma, até as partes menos importantes do corpo, que podem ser batidas e amassadas sem nenhum problema.A grande maioria já é pós-graduado em pegar ônibus. Assim como os passageiros o motorista também quer chegar rápido em casa. Os movimentos do famoso Latão estão em total sincronia com os movimentos dos passageiros. Latão pra lá, sardinhas pra cá.
Como de costume de todos os curitibanos, ninguém fala. Ninguém fala absolutamente nada. As pessoas estão tão juntinhas que é impossível que alguém esbarre em alguém, o espaço é mínimo. Mas caso isso aconteça, ninguém fala nada. No máximo o esbarrador olha para o esbarrado e finge estar falando alguma coisa, no final da “frase” apenas abaixa a cabeça como sinal de desculpa. E o esbarrado por sua vez abaixa a cabeça também, como se com esse simples gesto um dissesse para o outro:
-Ei amigão, desculpa por ter batido em você, você sabe como é né? Esses ônibus lotados balançando toda hora, isso acaba acontecendo.
E o esbarrado retruca:
-O que é isso? Não foi nada, nós que pegamos ônibus todos os dias já sabemos que isso é comum. Você pega sempre esse ônibus?
E a partir daí os dois começam a desfiar um longo papo até o ponto final. Mas isso é irreal e praticamente impossível. Ninguém fala nada. Até parece uma regra geral que todos seguem à risca. Quando o ponto chegou e alguém quer descer, o sangue sobe a cabeça e alguém tenta quebrar a regra, mas não quebra. Para pedir passagem apenas um “sença” já basta.
Mas de repente, sem mais nem menos alguém quebra o silêncio, através de um ritmo bem definido e pausas marcadas alguém grita lá da frente:
“Boa tarde senhores passageiros/ Desculpem atrapalhar a viagem de vocês/ Eu estou aqui nesse ônibus/ Pedindo a sua humilde contribuição./ Eu fiz uma operação/ que não deu certo./ Por isso eu estou com o fígado pra fora/ como vocês podem ver/ o meu fígado está em uma sacola plástica/ e preciso coloca-lo para dentro.”
Lá de trás eu penso: “Meu Deus do céu, que pessoa inescrupulosa! Eu só quero ir para a aula e as pessoas vêm aqui me mostrar o fígado. Que coisa nojenta! Aonde nós vamos parar desse jeito?”
Enquanto isso o sujeito vem lá da frente gritando e pegando os trocados que alguns passageiros conseguem pegar nos bolsos. As frases de agradecimento variam, três obrigados e um Deus que ajude:
-Brigado, brigado, brigado.
-Deus que ajude.
-Brigado, brigado, brigado.
-Deus que ajude.
-Brigado, brigado, brigado.
-Deus que ajude.
Eu lá atrás pensando: “Isso deve ser horrível. Se eu olhar para isso eu vou vomitar. Eu não tenho fígado para isso. Ou se tenho, mas pelo menos o meu está dentro do corpo”.
E ele vem se aproximando cada vez mais. E eu, felizmente sentado, prefiro virar o rosto para não ver. Colo a cara no vidro, o meu bafo começa a embaçar a janela. Mas eu não vou ver isso. EU NÃO VOU VER.
Quando ele chega bem do meu lado ele fala:
“Jovem, você não vai me ajudar?”
Eu penso em continuar olhando para a janela, mas seria muita arrogância de minha parte fingir que não ouvi. Olho primeiro para o rosto dele:
-Pai? O que o senhor está fazendo aqui?
-Filho? Você não devia estar na faculdade à uma hora dessas?
-Não mude de assunto. Desde quando o senhor tem o fígado para fora?
-Desde quando eu passei no açougue. Eu queria comer esse fígado, mas eu fiz uma operação no dente e não consigo mastigar.
-Mas se eu não me engano o senhor não disse nada a respeito do dente quando pediu dinheiro.
-Eu sei que não.E quer saber? Nem faz diferença. Ninguém perguntou nada mesmo. Todo mundo me deu o dinheiro sem perguntar mais nada. Afinal, Curitibano nunca fala.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nao sou daqui, mas como peguei coletivo todos os dias pra vir pra Ciranda, percebi isso mesmo que tu escreveu! O povo nao abre a boca! rs
Belo texto!