segunda-feira, 24 de março de 2014

Algema de sentimentos

Passou óleo, passou margarina, passou sabonete e não passava a agonia em ter aquilo em sua mão. Passou o dia e ainda não estava livre.

Ter aquela lembrança concreta era como manter uma fidelidade abstrata e unilateral.

Tudo acabou e o grilhão insistia em prendê-lo ao passado.

Engordou demais desde que comprou a aliança, que serviria para selar um compromisso.

Seu corpo engordou, sua cara engordou, seu dedo engordou, seu coração engordurou.

Talvez seu sobrepeso tenha sido o motivo para ser trocado. Agora era outro o dono dos sentimentos dela, que ele julgava ser único dono.

Por imaginar a eternidade ele esqueceu-se do presente e jamais se preocupou em tirar a jóia.

Pensava que a removeria somente para substituir por uma dourada, mas seu comodismo também evitou a troca.

Agora lutava contra a própria natureza para enfim livrar-se. Passou pela sua cabeça a ideia de arrancar o dedo para poder se libertar do fardo.

Queria tirá-la e jogá-la o mais longe possível. Arremessar para além do horizonte. Cegar qualquer visão anterior, ensurdecer seus velhos sentimentos e silenciar a gritante tristeza.

Ao conseguir retirar a infeliz, finalmente se sentiu aliviado como se removesse uma bala do corpo, mas embora se livrasse do projétil não conseguiu curar o ferimento.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Sem pai nem mãe

Um dia, quando era criança, chorei embaixo da coberta pelo fato de imaginar que um dia minha mãe morreria. Hoje deixei de ser criança e choro de verdade.

Com “apenas” 27 anos me encontro no mundo sem pai nem mãe, literalmente. Nenhum cordão umbilical. Sem dia dos pais, sem dia das mães e sem nenhum dos dois em dia algum.

De acordo com a lógica Edgar Scandurresca eu não sou nada. Meu filho ainda não nasceu, mas também não sou mais o filho. Com essa idade talvez eu já devesse ser independente, se é que alguém é, mas se por um lado sou velho demais para ser estudante e não financeiramente estável, também sou novo demais para não ter ninguém. Me sinto uma criança desamparada, um homem de 27 anos recém nascido e prematuro.

Quando se é criança há uma sensação de aventura em ficar sozinho em casa, ampliada por causa do Macaulay Culkin, mas hoje a solidão é um medo que se aproxima 
cada vez mais.

Sim, eu sei. Eu sei que é a lei da vida. É natural. Mas não tão cedo. Sei que ainda tenho minha irmã, que mesmo distante nunca estará separada de mim. Sei que ainda tenho familiares. Sei que tenho minha vó, com quem posso contar, apesar de ser eu quem deve tomar conta. Sei que tenho amigos que são verdadeiros irmãos. Sei que tenho uma namorada para tudo o que precisar (inclusive dar uma transadinha).

Eu sei. Mas apesar disso o sentimento de solidão é inevitável. Dentro de mim coabitam dois tipos de caos. Na cabeça o caos como conhecemos, um turbilhão de pensamentos que brigam entre si para ver quem está na vez. No sentimento o caos de Hesíodo, um vazio. Eu imaginava que um espaço vazio fosse apenas o vazio, mas descobri que o vazio tem um tamanho e o meu é imenso.

Durante o velório minha irmã comentou que “agora o Guylherme tem cara de homem”. Prefiro pensar que o comentário seja por conta da minha barba, que masculiniza, vagabundeia e esconde. Mas talvez minhas feições masculinas, que antes ela não reconhecia, tenham nascido quando subitamente se abateu sobre mim a responsabilidade de encarar o mundo sozinho.

Agora sou eu meu único responsável. Em caso de emergência, se eu sofrer algum acidente, por favor, avise a mim mesmo.