quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O efeito do beijo

Parecia apenas a entrada, mas não. O bar era aquilo ali mesmo. Um corredor com um balcão. “Perfeito” pensou. Sentou no banco e pediu um whisky e guaraná (não tinha tanto R$ pra energético) para o garçom, para o atendente na verdade, geralmente garçons vão até a mesa e lá nem mesa tinha.
Quando a bebida veio ele fez uma mistura desproporcional. Forte. Assim ele queria que fosse a noite. Só ele e a forte bebida. Queria beber para esquecer. Esquecer do trabalho, da chateação da família, da namorada, da preocupação das contas ou de como seria ter que esperar o madrugueiro para ir pra casa.
Termina a primeira dose e o celular toca. Um amigo. Um grande amigo. Não atende. Se atendesse o parceiro iria falar todo animado: “E aí Celso beleza cara? Vamos fazer alguma hoje?”. Mas só de imaginar a empolgação já sentia um pouco de raiva.
Pede mais uma. Um rapaz ao lado tenta puxar conversa. Por incrível que pareça nem sobre futebol ele queria falar. Para encurtar o diálogo/monólogo ele fala de maneira monossilábica. Quando o coxa-branca ao lado dá uma brecha ele vira o rosto e começa a acompanhar Jim Morrison. Tocava Riders on the Storm. Ele canta alto, mais alto que Jim. O torcedor futuro segunda divisão tenta falar, mas a cantoria encerra a conversa de vez.
O álcool vai fazendo efeito. A velocidade com que toma é diretamente proporcional do quão rápido fica bêbado. A raiva e o desejo de esquecimento vão dando lugar a uma eminente carência. Sente vontade de conversar com alguém. Mas não com o amigo que queria ir para a balada ou com um comentarista de futebol que não sabe nem sequer torcer.
Quando pede a quarta dose surge um alguém conhecido. “Mais inconveniente. Uma inconveniente desta vez”. Sem mais nem menos surge naquele bar esfumaçado uma amiga da sua namorada. Teria que falar com quem e sobre o que menos queria.
- E aí Celsinho. Tudo bom?
- Tudo e aí?
- Tudo certinho também. E a Amanda?
Ele demora a responder. Hesita.
- Bem...
- Já entendi.
Celso e Janaína nunca tinham conversado muito. Na sua visão era apenas a amiga de sua namorada. Ex-namorada.
Nunca imaginou que ela era tão legal. Sempre a achou bonita, mas muito fútil. Mas no decorrer da conversa (e do whisky) percebeu que poderia ser sua amiga também. E talvez até mais que isso. A esta altura a conversa já ia para outro rumo. Parecia(m) querer algo.
Foi ao banheiro. Olhou-se no espelho e conversou com ele. Celso e seu reflexo chegaram à conclusão que não poderiam ficar com Janaína. Era amiga da sua namorada, que ele ainda gostava.
Ele volta e a conversa continua. Enquanto ela falava sobre sabe-se lá o que ele pensava que talvez fosse melhor ter comprado logo uma garrafa inteira de whisky. Retorna ao diálogo, que seguia legal.
Sentiu-se à vontade para falar sobre o relacionamento. Revelou a causa do término e como se sentia, mas não disse que queria voltar com ela e nem que ainda gostava da ex. Falou em tom de revolta. Janaína então revelou que também havia brigado com a amiga algumas horas antes de chegar ao bar.
Sua cabeça pensa logo em ficar com a recente amiga. Lembra da conversa com o espelho, mas pensa “não estou mais com ela e elas brigaram. Então... suce”.
Pensando no futuro próximo ele pergunta:
- E aí? E aquele cara que você tava ficando?
Ela responde que não está mais com o rapaz em questão. Os dois sorriem. Por cerca de 15 segundos um sorri para o outro olhando-se hora para os olhos hora para os lábios. Um sorriso malandro e um olhar de desejo.
Aproximam-se e o beijo acontece.
Sente um gosto de vingança. Inevitável não pensar na ex. Inevitável não pensar na momentânea. Fica excitado como a muito não ficava com um beijo. Ela beija firme. Com desejo. A língua vai fundo. Ele começa a ficar tonto. Tenta encerrar o beijo por ali, mas ela o abraça com mais força. A tontura aumenta. Ela enfia a língua na garganta.
E ele vomita nela inteira.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Ela, ela e a operadora

Ele tenta controlar a ansiedade. Mas não dá. Olha o celular a cada instante. Qualquer coisa que faça sua calça mexer é interpretada como a vibração do celular. Qualquer pessoa que ele veja com o aparelho na mão já é razão para que também olhe o seu.
E isto é tudo culpa dela: a garota que está em outra cidade há mais de um mês. Mas não é uma garota qualquer. Garotas há milhares. Mas ela é... Ela.
Ele sabe que é bem do tipinho dela demorar para responder a mensagem. O que já o deixa naturalmente tenso, mas fazer o quê? Esperar, só isso.
Mesmo em uma festa cheia de gente legal ele não consegue esquecer. Jogando truco, conversando, bebendo, não adianta, a cabeça está a quilômetros de distância. Talvez seja melhor deixar o telefone em cima da mesa, assim, se chegar mensagem, ele verá e não precisa ficar olhando toda hora.
Não. Tática falha. Os reflexos fazem a tela brilhar e seus olhos também quando se direcionam ao fone. A esperança se esvai logo. É apenas reflexo.
Há uma linha tênue entre a esperança e a desilusão. Será que ela não quer mais nada? Será que realmente quis um dia? Será que arrumou outro por lá? Será que a distância no tempo e no espaço fez com que ela o esquecesse? As interrogações crescem em sua cabeça a cada minuto de demora.
Eis que todas as dúvidas caem à sua volta quando finalmente chega a mensagem. Ele abre e lê: 'Seus créditos estão prestes a acabar. Faça uma nova recarga no posto mais próximo'.


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Texto originalmente publicado no jornal Folha de Londrina em 25/03/09.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A foto

Era época de eleição. Naquela noite um dos candidatos que disputava o cargo de prefeito iria visitar um bairro do subúrbio. O comício estava marcado para as 20h30, mas a comunidade estava agitada desde as primeiras horas da manhã. O candidato, além de favorito, era um galã. Elegante, gentil, inteligente, sorridente e carismático.
No horário marcado a associação de moradores fervia. Algumas pessoas que não simpatizavam com o candidato ficaram do lado de fora tomando tubão (refrigerante + pinga), enquanto lá dentro homens, mulheres e crianças se acotovelavam na fila por um pão com lingüiça. O cardápio era completo por risoto. A cerveja também era por conta da casa, o que deixou os bares da região às moscas. Até mesmo alguns dos donos dos botecos poderiam ser vistos no local.
A marchinha da campanha era repetida à exaustão alternando com pagode, samba, axé e música sertaneja. A bebida atraiu um bom número de homens para a associação, mas a maioria do público era feminino. Todos queriam vê-lo de perto, mal acreditavam que ele iria visitar a comunidade.
Comeram, beberam, dançaram, receberam camisetas e adesivos e nada dele. Eis que uma hora e meia após o início da festividade ele chega ao lado da primeira-dama que também já atraia a simpatia do público. Cercado de seguranças, assessores e fotógrafos ele arranca suspiros de quem lá estava. Mesmo sendo programada parecia uma surpresa a sua presença.
O barulho alto silenciou-se quando ele começou a falar. Vez ou outra alguém gritava “é isso aí prefeito”. O ritmo foi seguido durante os 30 minutos em que ele discursou. Ao final, aplausos calorosos.
Todos foram em sua direção quando desceu do palanque. Cercado por homens de preto ele ficou disparando sorrisos e beijos a quem tentava lhe tocar esticando o braço. Dona Arlete com a criança no colo se aproximou. Ele apanhou a criança e a beijou fazendo pose para a câmera. Continuou com a pequena Amanda nos braços durante boa parte da celebração.
Naquela noite o candidato promoveu a alegria do público feminino. Com um banner da campanha ao fundo ele tirava foto com quem desejasse. A sessão de retratos foi intensa. Mais de uma centena de mulheres quis registrar o momento. Meninas, moças, mulheres e avós tiravam foto e a recebiam após alguns minutos.
Dona Izolda foi uma delas. Sorridente voltou para casa na companhia do marido, Seu Alencar, e suas filhas. Uma delas, Rafaela, também teve seu registro com o galã. A outra, Rafaelle, não simpatizava muito com o candidato, mas não perdeu a boca livre.
A foto passou alguns dias sob o criado-mudo “largada”. Depois disso foi para a porta do armário dividir espaço com a foto do casamento e com a foto do casal de filhas. Quando viu, Seu Alencar pediu em tom educado para que Izolda retirasse a foto. Ela respondeu sorridente que não o faria.
A porta do armário era aberta toda noite antes do casal dormir quando Izolda ia guardar a roupa e pegar a camisola. Com o tempo a educação foi dando lugar à grosseria na forma com que Seu Alencar pedia para que tirasse a foto.
Em uma das noites Dona Izolda deixou a porta do armário aberta quando foram se deitar. Ciente de que a mulher sabia sua opinião sobre a foto Seu Alencar nada falou interpretando o ato como provocação. Coincidência ou não o faixo de luz que vinha do poste e passava pela cortina batia exatamente na imagem. Era impossível para Seu Alencar tirar aquilo da cabeça mesmo na hora em que foram fazer amor.
Alencar broxou. Levantou-se enraivecido, pegou a foto, amassou e jogou no chão sem nada falar. Izolda também permaneceu calada apenas se vestiu, virou para o lado e dormiu.
No dia posterior a foto estava lá novamente. Nas duas semanas seguintes nada de sexo, nada de beijo e pouco diálogo. Em uma sexta-feira em que chegou mais tarde depois de ter ido ao bar Seu Alencar encontrou Dona Izolda beijando a foto antes de dormir. Silenciou.
Na manhã seguinte depois do café Seu Alencar deu o ultimato: “ou a foto ou eu”. Não esperou a resposta e saiu de casa. Foi para o churrasco do Edmar. Quando chegou de noite abriu a porta do armário e a foto ainda estava lá. Pegou uma coberta e foi dormir no sofá. E assim continuou.
A eleição passou. O candidato se elegeu. E o casal continuava de leito separado e falando apenas o necessário.
Seu Alencar que comprava um jornal favorável ao prefeito resolveu assinar o jornal concorrente. Quando aparecia na TV ele logo mudava de canal. Quando isso acontecia Dona Izolda o olhava com um olhar de reprovação. O olhar era respondido com o mesmo tom. Era uma das raras vezes que se olhavam.
Passados seis meses de governo um escândalo abalou a cidade. O prefeito estava envolvido em uma maracutaia grande. Seu Alencar dava indiretas na mulher. Fazia de tudo para reforçar a imagem de ladrão que o prefeito ganhou. Nos almoços qualquer assunto comentado pelas filhas terminava com uma acusação ao prefeito feita pelo pai.
Em uma noite no intervalo da novela o casal assistia TV com a cabeça sem virar para o lado de maneira alguma. Olhares fixos na tela. Alzira se levantou e foi até o quarto. Pegou a foto e rasgou na frente do marido. Ele apenas observou. Ela lhe deu um beijo e falou: “você tava certo Alencar. Ele é um canalha”.
E voltaram a ser marido e mulher como antes.