sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Fixar o flexível

Ando com o hábito de usar o elástico de cabelo na mão.

Não faz sentido.

Na mão ele elastica algo que não precisa ser elasticado.

O local de trabalho no qual deveria exercer sua função é a cabeça. No entanto, o aloquei em um setor onde a sua atividade é prenunciar. Prestes a amarrar as cordas, que em certas ocasiões já estão presas entre si, acabo sem atar e nada faço com o que tenho nas mãos.

Pensando bem, faz todo sentido.

Não fazer nada, quando se tem tudo, é um dos meus vícios.

Com a faca na mão, fico em face do queijo sem esfaqueá-lo. Inerte. Como um suicida sobre a cadeira, que tem a corda torcendo aos seus ouvidos, mas que apenas escuta.

Não sei o que me bloqueia. Talvez o medo de mudar o estado das coisas e o meu estado.

Levo tudo até as penúltimas consequências.

Cursei Letras no período correto. Chegado o tececê, travei.

Comecei o curso por querer ser escritor. Passei anos sem ser percebido. Me acharam. Me mudaram de patamar e não pulei. Me tornei alguém publicado, mas fui parando de escrever até voltar a ser ninguém.

Quando adolescente, queria ser Mc. Me apresentei num show uma vez. Do meu grupo um dos integrantes seguiu a missão. Eu, desde jovem, já não sabia o que queria.

No jornalismo fui uma promessa que não chegou ao santo. Ganhei alguns prêmios universitários como fotógrafo. Formado, abandonei carreira e câmera.

Teria sido uma coisa bonita.

Meu pai abandonou o seminário. Um padre lhe pagou um curso de fotografia. Ele virou bancário.

Se eu fosse fotógrafo, poderia continuar o que ele começou. Poderia terminar alguma coisa. Terminamos abandonando a mesma possibilidade.

Dá pra entender.

Quem não tenta, não ganha nem o fracasso.

Agora, esse negócio do prendedor externa minha particularidade que já não é mais tão particular.

Semana passada um rapaz me viu com o elástico. Disse que também usa dessa maneira. Mostrou até uma foto.

Fiquei feliz em conhecê-lo.

Criamos um grupo de apoio. O Usadores de Elástico de Cabelo na Mão Anônimos. Marcamos a primeira reunião para terça-feira, 18h.

Cinco minutos antes, desisti.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Ana Maria Braga

Todo dia traz consigo uma batalha da qual não consigo fugir.

Às 8h o despertador começa a trabalhar e segue manhã adentro tentando cumprir seu objetivo. Dedicado, mais do que eu, nem recebe hora extra.

Minha vó se junta a ele. Leva seus 91 anos para baixo e para cima da escada. Traz café.

Eu, com 31, não tenho um terço da sua disposição física e mental.

- Foi dormir tarde, Guylherme?

- Fui, vó!

Não é por isso.

É porque meu único desejo legítimo é ficar na cama para sempre.

Abro os olhos. Ligo a tevê. As notícias passam. Chico Pinheiro se despede. Quando a Ana Maria Braga cumprimenta o Louro José eu já deveria estar no trabalho. Não estou.

Ultimamente tenho estado sempre em lugar nenhum.

A Ana Maria Braga deve acordar bem cedo.
Li num livro que a Ana Maria Braga entrou em depressão porque não conseguia vencer o Chaves no Ibope.

Agora ela parece bem. Tem um sorriso bonito.

Uma amiga falava que eu também tinha.

Não tenho mais.

Alguns dentes entortaram por causa do siso. Outros lasquei caindo de bêbado. Teve também aquela vez que tentei separar uma briga e acabei com um dente separado do corpo.

O café e o cigarro fizeram com que eles escurecessem.

O cigarro, aliás, servia de estímulo para que eu levantasse.

“Se você levantar, pode fumar um cigarro antes de tomar banho!”.

Agora parei.

Da última vez engordei 10 quilos e depois voltei.

Fiquei gordo e continuei com o pulmão fodido.

A Ana Maria Braga teve câncer e voltou a fumar.

E ela nem tosse quando dá risada.

Eu, que sou asmático, preciso parar.

E também preciso de algum outro estímulo para levantar.

Só viver já não basta mais.

Além disso, não quero tomar banho. Nem escovar os dentes. Nem trabalhar.

É irônico. O rapaz que era otimista, idealista, que um dia quis mudar o mundo, não consegue nem levantar da cama.

Não mudei de lado, mas talvez tenha me entregado.

Eles venceram.

Como se eu já não soubesse que isso iria acontecer.

Foda-se.

Hoje sou alheio a tudo.

E quero ficar na cama.

Piadoca da internet: “Sempre que eu tenho um problema, eu me pergunto: ‘O que Jesus faria?’. Aí eu me finjo de morto e desapareço por 3 dias”.

Acho engraçada.

Me leva a pensar o que os meus heróis fariam?

Mas...

Quem são meus heróis, mesmo?

Talvez o Batman seja mesmo meu paladino. Talvez eu me abrace na ficção para não precisar encarar a realidade.

No filme ele fica um tempão apartado em uma área da mansão Wayne.

O Batman não precisa trabalhar.

Filho da puta.

A minha identificação com o Wolverine talvez seja maior. Ele trabalha.

É um lenhador.

Sinto inveja dele.

Corta toras sem precisar pensar, sem pesquisar, sem escrever.

Noutro filme desses de herói ele se isola em uma caverna até que o mundo vai lá e desisola ele.

Mundo filho da puta.

Eu não consigo me isolar. O mundo está sempre me incomodando e eu me sinto um incômodo pra ele.

Na tevê apareceu a estória de uma moça que aprendeu a fazer uma peça de artesanato no Mais Você. Hoje ela foi participar de um encontro internacional de artistas graças à Ana Maria Braga.

Deu vontade de chorar.

Quase tudo dá vontade de chorar.

Fica um negócio ruim na garganta que não sai nunca. Um aperto.

Quando eu fumava, esse negócio até saia, às vezes. Eu engolia o negócio junto com a fumaça e depois jogava pra fora.

Deve ser por isso que a Ana Maria Braga fuma.

Talvez a Ana Maria Braga seja minha verdadeira heroína. Ela superou a depressão, o câncer e conversa com um papagaio.

Além disso, a Ana Maria Braga conseguiu me fazer levantar.

Hoje.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Cadernos, álbuns, memórias e amores

Preciso de espaço para novas coisas velhas.

Guardo muita coisa.

Outras, carrego.

A mochila, eterna companheira, estará mais vazia neste ano. Depois do longo período levando um caderno universitário, decidi usar algo menor. Um bloco, talvez.

O volume de 2017 vai para o armário com os demais. E são papéis demais.

Pela falta de espaço, decidi me livrar dos dois mais antigos.

Um deles tem Gustavo Kuerten na capa e alguns adesivos. Internamente, pichações e recados:

“Fogo, você é minha vida kra!!! T. amu muito + do que você imagina, gostosão! Ass: Ka. B.jus”
(Ka: você era muito irônica).

“Guy te amo!! Dany”
(Dany: você me excluiu do Facebook).

“Guy: Te amo! Beijocas da Moni”.
“Cutty: Te amo. Beijocas da Moni”.
“Cuty T. amo muito! Beijocas da Moni”.

(Moni: Acho que você me amava mesmo, né? Desculpa por não ter correspondido. Eu era um babaca. Ainda sou. A diferença é que antes eu era um babaca inexperiente. Agora sou um babaca cheio de experiência em ser babaca).

Aparentemente, enquanto Moni me amava, eu amava outras coisas.

Assim como o tempo faz com as pessoas, as anotações escolares foram arrancadas. No caderno há apenas escritos pessoais. Letras de rap jamais gravadas. Objetivos não concretizados. Se eu tivesse continuado...não continuei. Na vida nada continua.

No final, há manuscritos de poemas da minha primeira publicação, um concurso literário voltado aos alunos da universidade. Talvez o propósito de ser mc tenha sido substituído pelo de ser escritor. Nenhum dos dois deu certo.

O outro companheiro esteve comigo por mais tempo e é o que mais precisa ir pro lixo. Até hoje não me serviu para aprender inglês. Ele também não cumpre seus desígnios.

Nele, mais pichações, especialmente de um amigo que assina como “Lee”. Ao contrário de mim, Lee gostava bastante do meu caderno.

Há ainda endereços de fotologs e mais recados:

“Oi! Fogo. Td bom? Bjão Karol”

“Fogo: A Ká t ama muito. C cuida não deixa nenhuma mulher te fazer vc de trouxa tá. Kari”

“Fogo -> bju Belle.
Ah! Quero uma festa...
Te adoro!”

“Fogo te adoro bjus...Priscila”


O último recado talvez represente o amor verdadeiro:

“Fogo vc é um bostinha + eu ti aminhu!! Bjus da Vê. 18/04/05”

Fiquei feliz por ter sido amado apesar dos defeitos. Ainda assim, essas palavras serão descartadas.

Continuarão as roupas e os álbuns.

Um deles é o da minha mãe. Nele, logo no começo, estão fotos do casamento que ela fez sozinha. Meu pai foi omitido. Recortado.

Depois, variados instantes se encontram fora de ordem. Diferentes momentos e penteados se misturam.

Há registros em família, no trabalho, na faculdade. Ela aparece sempre bonita.

Em uma das fotografias, ela sorri com a perna quebrada. Eu lembro do acidente. Minha vó saiu e a deixou trancada no quarto para que não fosse comprar mais bebida. A solução foi pular pela janela do sobrado. Não era um momento feliz. Fotografias são mentirosas.

Na última página, em um recorte de jornal, meu pai reaparece:

Missa do 1º mês de falecimento.
Márcia, Guylherme e Jaqueline, convidam amigos para a missa de Canuto José Custódio Neto a realizar-se na Igreja Matriz de Santa Felicidade na Av. Manoel Ribas, 6252, dia 28 de dezembro, quarta-feira, às 19h.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Passa Voando

O período em que é permitido ser livre está marcado no calendário. São as férias. Tempo de voar. De ganhar os céus. De brincar com vento.

Dá pra ficar o dia inteiro na rua e só voltar pra casa na hora de comer e dormir. O uniforme é chinelo, bermuda e camiseta. Mesmo com o sol nos olhos, não há óculos para bloquear a vinda da vida.

O ar não é usado só para respirar. Serve para ver, sentir e viver.

Antes disso, a preparação deve ser intensa. É preciso construir a nave para poder navegar.

Desbravou um terreno desconhecido para pegar bambu. Com a precisão de um cirurgião transformou-o em três varetas. A maior delas seria a coluna vertebral. As outras duas, uma reta e uma envergada, dariam sustentação ao corpo celeste.

Amarrou as cordas como um marinheiro, atando milimetricamente todas as pontas.

Escolheu as cores com as quais iria desfilar na passarela isenta de modismos. Preto e amarelo contrastariam com o branco e o azul.

Recortada e colada a seda, era fundamental preparar o raio do cometa. A rabiola foi feita com fitas de saco de lixo. Essa era a parte mais rápida. Montar a fantasia que, além de adornar, faz com que não fique pensa. É a asa do avião que agora está pronto para a decolagem.

Mas, antes de ir para cima do inimigo é necessário afiar a sua espada. Para amolar é indispensável quebrar alguns vidros. A lâmpada florescente dá o mais fino fio.

Para passar o cerol é obrigado esticar a linha. Os portões da vizinhança se mostram bastante solícitos. Se vem carro, vem apreensão. Tem que erguer para ele passar. Mas o nervosismo passa.

Quando seca, tudo está acabado para começar. Ele, enfim, colocaria a sua raia para participar do bailado que se dedica a debicar.

Coloca o dedo indicador na boca. Verifica as condições atmosféricas. Tudo pronto, comandante. O seu fiel escudeiro segura a pipa acima da cabeça. Ele puxa rápido. Enfim o fio é o limite. E as nuvens são de quem quiser. Puxa. Ela sobe com vontade. Rumando para todo espaço que há no espaço. Descarrega. Ela cai leve, deixando que a natureza lhe leve devagar. Quando chega na altura das demais raias sente a liberdade que todos deveriam ter.

Mas no céu também há disputa.

Foi cortado tão rápido quanto a passagem da infância.