terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Olho Mágico

Pela grande janela que dava para a rua Dona Leocádia viu as três novas moradoras chegando animadas. O tempo não tinha levado sua atenta visão e audição.

Saiam do táxi cheias de malas. Vinham para ficar.

Dona Leocádia conhecera todos os moradores que passaram pelo prédio. Com a chegada tinha três bons motivos para continuar viva. Eram três vidas para futricar e espalhar.

Estava lá desde que os curitibanos começaram a se empilhar uns em cima dos outros. Mudou-se depois de ter casado com seu Roberto, um militar marido, e ali passaram a lua de mel. Foi uma das primeiras a experimentar a sensação de morar no alto e ver de cima o desenvolvimento da capital e a degradação do ser humano. 

Com o tempo passou a não se contentar mais em ter esse olhar superior. Preferia olhar para todos os lados possíveis. Quanto mais o tempo passava mais olhava para dentro do prédio e da vida de seus habitantes.

As pessoas de fora já não tinham mais graça nem graciosidade. O centro passou a ser apenas uma passagem. Quando escurece é a parte da cidade que sobra para aqueles que não têm para onde ir e vira um ponto de vendas para os comerciantes da calada. 

Em uma noite de observação quase teve um ataque cardíaco ao ver um rapaz sendo assaltado. Chamou a polícia, que chegou meia-hora depois, quando os bens do garoto já tinham virado fumaça.

Na última vez que viu a polícia por ali eram eles que roubavam um menino. E batiam. Aprovou a atitude dos guardas, até mesmo por que naquele lugar, naquela hora, pessoas boas não ficavam.

Alguns dias depois ouviu no rádio que o corpo de um menino fora encontrado em um matagal na região metropolitana. A reportagem disse que o adolescente fora pego pelos policiais ali na sua rua, na frente do seu prédio. O locutor disse que o jovem estava fumando maconha. Aprovou ainda mais a atitude dos homens da lei. Maconheiro tem que morrer mesmo.

Agora olhava pela janela só por que sabia que as meninas chegariam. Teve a honra de recepcioná-las. O proprietário do apartamento deixou a chave com ela. Ele não ia muito lá. Depois de cinco anos como morador decidiu alugar o imóvel. Não aguentou viver no centro. Muito barulho, muito grito, muito tiro.

Assim como a população da classe alta e a prefeitura, ele abandonou o centro. O vizinho foi se avizinhar lá pros arredores da cidade. Foi morar em um condomínio seguro e luxuoso, que embora tivesse uma favela ao lado, não o atrapalhava. Um alto muro garantia que sua visão se direcionasse apenas para o condomínio.

A alegria das meninas era visível lá de cima, mas fecharam a cara quando Dona Leocádia as cumprimentou. Mesmo na sua presença conversavam somente entre si.

Chegando ao apartamento não a convidaram para entrar e fecharam a porta. Ela ainda ouviu quando trancaram-se.

Aquilo era um ultraje. Como alguém chega ao seu prédio, nos seus domínios, sem que se apresentasse a ela? Sem lhe pedir nenhuma ajuda. Nenhuma informação.

Por trás da porta Dona Leocádia ouvia risadas frequentemente. Quando percebia que iriam sair logo saia também, para promover um ocasional encontro, mas nunca conseguiu uma conversa.

Um rápido “Oi, tudo bem?” era o máximo. E saiam apressadas. Nem a ajudavam a descer as escadas. Ainda bem, pois não iria sair mesmo. Quando percebia que já tinham saído do prédio voltava para o seu apartamento.

Sem as meninas em casa não tinha muita ocupação. Lá dentro sentia o vazio.

Com o passar de um mês ainda não descobrira nada sobre as meninas e decidiu que somente escutar já não bastava. Precisava ver. Mandou colocar um olho mágico.

Aquele desconhecimento a agoniava profundamente. Não sabia nem mesmo o nome delas. O prédio não tinha nem porteiro para poder se informar. Decidiu então buscar com os outros moradores.

Dispensou um dia de observação para fazer visitas. Andou pelo prédio inteiro conversando de maneira amena, despretensiosa. Subiu e desceu escadas, bateu em todas as portas e a única coisa que descobriu era que as garotas diziam ser universitárias.

Elas não saíam muito, mas pareciam ter muitos amigos. Recebiam muita gente, mas nem iam até a porta recepcionar. As visitas eram geralmente masculinas e ficavam lá por uma hora, de acordo com o cronômetro de Dona Leocádia.

Não saber nada era uma tortura e aquelas risadas eram atos de requinte. Não entendia como ficavam o dia inteiro em casa, embora ela fizesse o mesmo.

Saíam somente nos finais de semana. Um carro preto as esperava na noite de sexta-feira e as devolvia para Dona Leocádia na segunda-feira pela manhã. 

Com o passar dos meses ela foi ficando doente. Suas costas doíam cada vez mais por ficar tanto tempo em pé tentando ver e ouvir algo. Em algumas ocasiões esquecia-se de tomar os remédios e se segurava ao máximo para comer e ir ao banheiro. Às vezes fazia ali mesmo para não deixar de espiar.

Em uma noite de quarta-feira um homem foi visitá-las. Entrou sozinho e saiu dali 15 minutos.

Na manhã seguinte, quando a polícia e a reportagem perguntaram, Dona Leocádia disse que estava dormindo.

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