segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A perdida

A sociedade sempre a julgou como perdida. E naquele dia ela saiu determinada. Nada iria a parar, nada. Iria penetrar e não mais voltar.

O pai foi quem ordenou que ela saísse da sua casa quente e fria para morar em alguém. Bastou o dedo para que ele ordenasse e ela partisse.


Já tinha disposição. Nasceu para isso. Sua vida foi feita para sair e entrar.


Estava vestida para matar. Seu vestido metalizado a faria chocar.

A safada nem esperou até a noite. Saiu sob o sol, na vista de todos.

Saiu rápida, cortando o vento e soltando fumaça pelas ventas.

Fez barulho, muito. Estrondosa.

Apesar do esforço, muita gente nem a viu. Não reparou. O lugar onde ela foi muitas vezes não é visto.

Embora perdida, saiu decidida.

Em sua perdição encontrou alguém. Achou o corpo que tanto procurava. Encontrou uma vida. A bala perdida levou à morte uma criança de 7 anos.


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A Televisão

Acabo de fazer a melhor aquisição da minha vida.

Comprei uma televisão.

Para vocês eu sei que pode parecer que foi muito dinheiro, mas não foi. A utilidade dela faz valer cada um dos seus 89.999 reais. Ao longo dos próximos 10 meses vou desembolsar R$ 8.999,90.

A minha nova televisão, que vem para substituir aquela que tinha Vídeo Cassete integrado, tem 85 polegadas. Posso assistir em uma tela de cinema as notícias de que manifestantes pedem a intervenção militar no Brasil. É uma maravilha ouvir por meio de um sistema de áudio de 120W e alto-falantes Sub-Woofer que pessoas se manifestam pelo direito de ser torturadas e mortas caso queiram se manifestar novamente.

Com a resolução Ultra HD 4k posso ver com completa nitidez que de uma certa maneira esse tipo de intervenção já existe. O pedreiro Amarildo não pode.

Se canso de assistir tv posso me conectar à internet. Com seu Wi-Fi integrado posso acessar as redes sociais e ver postagens pedindo a separação do país e críticas aos programas sociais do governo. O pessoal que faz isso não tem uma tv igual a minha. Se tivesse, talvez criticasse com a mesma força o poder judiciário, que aprovou uma gorjeta de 4,4 mil mensais para cada magistrado em nome de um auxílio-moradia.

Falta muita informação quando não se tem uma tv como a minha. Mas, felizmente, com esse aumento os juízes poderão ter mais dinheiro, ir a Miami comprar ternos e talvez ter um aparelho como o meu. Por que, cá entre nós, essa é uma coisa que todo mundo tem que ter. Comida não.

Para relaxar um pouco desses assuntos chatos eu assisto o meu esporte favorito. O eletrônico é perfeito para mim (pra quem não seria né!?). Ele conta com o Modo Futebol, que torna suas configurações perfeitas para assistir jogos em que torcedores xingam jogadores de macaco.

Na minha tv milhares de imagens se sobrepõe. É receita em cima de notícia, notícia em cima de dinheiro, dinheiro em cima de celebridades, celebridades em cima de humor, humor em cima de preconceito. É tanta imagem que às vezes não consigo conectar as coisas, como política e falta de água. Mas o que realmente importa é que minha tv tem 4 conexões HDMI e 3 USB.

O jornal local fica uma maravilha na minha tela, que converte a imagem em UHD independentemente do sinal. Ali, ou aqui, vejo os haitianos sofrendo preconceito e xenofobia na nossa bela capital, construída por imigrantes assim como a minha tevê, desenvolvida por uma empresa coreana.

O retrocesso da humanidade fica lindo na minha TV. Compre uma você também!